quarta-feira, 28 de julho de 2010

Novas bases para enfrentar o racismo

(Publicado no Vermelho)
Por Beto Almeida (*)
“Uma notícia ta chegando lá do interior
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão...”
Milton Nascimento e Fernando Brant

Nesta semana que termina o Estatuto da Igualdade Social foi sancionado pelo presidente Lula. Para um país que teve quase 4 séculos de escravatura, sendo o último a abolir este opróbrio, e , tendo ficado 112 anos à espera de uma legislação que consolidasse bases para um enfrentamento mais vigoroso ao racismo ainda vigente em nossa sociedade tão desigual, o episódio mereceria um destaque muito maior por parte dos meios de comunicação. Mas, sem surpreender, a grande mídia comercial noticiou apenas discretamente o evento. Nenhum grande jornal deu na primeira página. E o Jornal Nacional da TV Globo fez apenas uma notinha curtíssima para a importância do fato, sem imagens. Ou seja, na proporção inversa da ampla divulgação que deu, por meses, à campanha do DEM contra as cotas para alunos pobres e negros na universidade.

Já a Voz do Brasil, programa radiofônico que também nesta semana fez mais um aniversário, cobriu decentemente a sanção do Estatuto da Igualdade Racial, mesmo estando sob ataque da ideologia mídia de mercado, que quer mais uma hora para entupir os ouvidos do povo, predominantemente, com mais baixaria e publicidade. Portanto, nos grotões, nos quilombos, nos assentamentos da reforma agrária onde a Voz do Brasil alcança, a notícia até que chegou. Mas, como diz a música “Notícias do Brasil”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, a depender da grande mídia comercial, a informação ou é nula ou é a mais resumida possível. Será nostalgia das senzalas e do pelourinho por parte dos barões da mídia?

É preciso lutar para a lei pegar

Muitas conclusões podem ser tiradas da entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Racial. Entre elas, certamente, a de que como nos demais estatutos, entre eles da Criança e do Adolescente, o do Idoso, ou o Código de Defesa do Consumidor, a sua plena vigência não é automática. Será preciso lutar para esta lei pegar. Com a dinâmica das lutas é que as leis se consolidam, se aperfeiçoam, ampliam direitos. A licença maternidade, por exemplo, instituída em 1932, na Era Vargas, estabelecia apenas dois meses. Acaba de ser ampliada para 6 meses. Em Cuba, há décadas, a licença maternidade é de um ano, e beneficia também o pai por um certo período.

Afinal, aqui estamos numa sociedade capitalista, com desigualdades trágicas, e onde a lei ainda é presa fácil do poder econômico e onde nem a própria Constituição alcançou ainda sua plenitude. Sem contar que tratam-se de textos legais rigorosamente desconhecidos da grande massa do povo brasileiro. Está escrito na lei que é crime matar, mas a taxa de homicídios impunes no Brasil alcança a tenebrosa estatística de 93 por cento dos casos, que ficam sem solução, são arquivados. Assim, transpondo para o Estatuto, para que ele realmente vire um texto a ser cumprido à © indispensável a convocação da cidadania, dos sindicatos, dos movimentos sociais, para conscientizarem-se de sua existência, de seus alcances e limites. E também da necessidade de protagonismo e militância caso queiramos empreender uma inadiável batalha contra esta praga social do racismo. Talvez por isso mesmo a grande mídia não divulga, esconde, quando era tema para se fazer do Estatuto um grande fato comunicativo.

A insensibilidade social da mídia

Dois episódios me ocorrem para provar a insensibilidade social das oligarquias que dominam estes meios de comunicação como se administrassem um latifúndio do espectro eletromagnético ou impresso informativos. Quando Monteiro Lobato, revoltado com o analfabetismo de nossa gente, apelou a uma família proprietária de grande jornal paulista para que a imprensa realizasse uma cruzada contra este subproduto da deseducação, da ignorância e da pobreza. A resposta que recebeu de veria estar em todos os cadernos de alfabetizadores para lembrar que a alfabetização sempre teve inimigos nas oligarquias. “ Ô Lobato, mas se todos os negros analfabetos forem aprender a ler, quem é que vai pegar na enxada??”, ouviu um atônito Lobato, registrando-se no episódio uma soma de elitismo com racismo.

No outro episódio, ocorrido décadas depois, o diretor de redação deste mesmo jornalão paulista mata a sua namorada com três tiros, confessa o crime, é condenado e continua absolutamente livre. O motivo para o crime? A jovem jornalista, de origem pobre, meio mulata, queria terminar o namoro. Pena de morte! Ou seja, mesmo sendo proibido matar, mesmo tendo havido a confissão, mesmo tendo sido condenado, o tal jornalista, está desfilando sua impunidade livremente, indicando que tipo de ódio social pode estar sendo cultivado nas cúpulas de quem faz a comunicação no Brasil e a maneira muito especial que o Judiciário tem para julgar casos a ssim!. Quem será a próxima? Por isso, sem uma convocação da sociedade para transformar este Estatuto em muito mais que uma referência longínqua e teórica, nós poderemos talvez constatar que o racismo ainda irá resistir por mais tempo, mesmo sem qualquer razão para existir, pois trata-se de um crime.

Brasil tem novo rumo

A outra lição a ser tirada, orgulhosamente, é que o Brasil está na contra-mão das ondas de racismo e xenofobia que grassam pelos grandes países capitalistas, sobretudo naqueles países que se arrogam avançados. Ondas que vêm acompanhadas da demolição de uma série de direitos trabalhistas e sociais conquistados na edificação do Estado do Bem-Estar Social. Tudo isto em razão da crise do capitalismo que está sendo descarregada impiedosamente sobre os trabalhadores. O Brasil está ampliando direitos sociais!

Países como Suíça, Áustria ou mesmo França, debatem-se entre a tomada de medi das legais que restringem, agridem, desrespeitam trabalhadores negros e árabes que por lá trabalham. E em outros países como Itália, Espanha e Inglaterra, na prática o racismo vai mostrando seus dentes criminosos, seja nas condutas dos agentes públicos, dos agentes de emigração, e, muito especialmente dos agentes policiais. Estes, chegam ao ponto até há não hesitar em matar em caso de dúvida para com um negro, um mulato, um árabe, sempre que houver a dúvida, como dolorosamente ocorreu com o mineiro Jean Charles Menezes, executado em pleno metrô de Londres com 7 tiros na cabeça. Foi considerado terrorista por ter a pele amorenada e o cabelo não liso!!! Recentemente, o primo de Jean Charles, que também trabalhou na Inglaterra e luta para que se faça justiça de fato neste caso - o governo inglês deu uma indenização à família pela morte, como se fosse uma mala extraviada - acaba de ser deportado ao tentar entrar novamente naquele país que também está empilhando cadáveres no Afeganistão e no Iraque, além de ameaçar a Argentina com nova agressão militar ilegal pelas Ilhas Malvinas.

Basta uma consulta sobre quem anda preso hoje na Europa e encontraremos, na maioria, um contingente de jovens negros, árabes, pobres, recebendo o castigo da prisão. As estatísticas judiciárias nos EUA também revelam uma população carcerária predominantemente negra, pobre, asiática e hispânica. O mesmo ocorrendo sobre quem hoje está no corredor da morte para ser executado lá. Entre eles, o jornalista negro Múmia Abu Jamal, condenado num processo repleto de irregularidades e exatamente por Juiz conhecido por ser o campeão em enviar negros para a cadeira elétrica, onde fica claro que o crime principal de Múmia é o de ter nascido com a pele negra.

O Estatuto da Igualdade Racial é um passo forte nesta luta contra o racismo no Brasil, indicando direção oposta ao que ocorre no mundo. Da mesma forma que mui tos países chamados de desenvolvidos estão fechando-se aos emigrantes, punindo-os, o Brasil adota política de abertura jurídica de espaços generosos aos estrangeiros que aqui vivem, linha oposta à xenofobia. Assim como nos EUA, em 1963, o Presidente Kennedy teve que enviar tropas do exército para garantir a matrícula de dois jovens negros na Universidade do Alabama, então vetada a negros, um estatuto aqui deverá ser alavanca para mobilizar vontades conscientes e dar bases jurídicas para que os que praticam racismo sejam condenados. Depois daquele episódio no Alabama, muitos massacres de negros houve nos EUA, e ainda os há. Executaram Martin Luther King e Malcon X. Aqui no Brasil os massacres se acumulam. Entre eles o massacre do Carandiru, dos 111 presos, quase todos pretos, como diz a música do Caetano. A Chacina da Candelária, a de Acari, a de Vigário Geral. Negros são os primeiros a tombar.

É preciso parar o Carandiru diário br />
O Estatuto da Igualdade Racial também desafia e estimula a criação de ações concretas por parte da Secretaria Especial de Direitos Humanos no sentido de coibir a prática diária de torturas nos estabelecimentos prisionais brasileiros. Houve uma concentração de esforços na apuração de tortura e assassinatos ocorridos durante a ditadura, mas não tem havido uma política eficiente da Secretaria contra a tortura diária, prática corriqueira, que atinge sobretudo pobres e negros agora mesmo na maioria destes órgãos judiciais.

Se o Estatuto dá as bases jurídicas para a punição da prática de racismo na internet, se protege os direitos das comunidades quilombolas, se proíbe às empresas a prática de critérios étnicos para preenchimento de vagas de emprego e, entre outras, torna obrigatório o ensino de história geral da África e da população negra do Brasil em escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio - e todos este s são pontos muito positivos para uma nova realidade de luta global contra o racismo - mesmo assim, só uma militância vigorosa, atenta, fortalecida fará com que a transformação pretendida seja a mais rápida, a mais profunda, a mais ampla.

O Estado brasileiro, ainda marcado por todos os vícios e deformações inerentes a um estado com as características da burguesia, vem experimentando por meio da convocação de Conferências Públicas, as mais variadas formas de democratização. Desde a primeira Conferência Nacional de Saúde, ocorrida também na Era Vargas, em 1942, e sobretudo durante o governo Lula, um torrencial de demandas e propostas está sendo perfilado, organizado, tornado visível, proclamado, muito embora, em vários casos, ainda sem conseguir a relação de forças adequadas para as mudanças mais radicais, mesmo sendo absolutamente necessárias. Algumas das bandeiras do movimento negro e dos movimentos sociais em geral, somente serão real idade com uma transformação social muito mais aprofundada, algo que um governo de composição como o atual ainda não reúne todas as condições de implementar e consolidar. Mas, as bases estão lançadas para um patamar superior destas lutas. Em vários casos, são os próprios movimentos sociais que não adotam também uma tática capaz de condicionar, o governo, por meio de um apoio crítico, a realizar mudanças concretas em muitos setores. Por exemplo, não se justifica que a TV Brasil - mesmo com toda abertura e visibilidade que já oferece às questões ligadas à África - não tenha ainda horários definidos e ampliados de sua programação que contemplem os diferenciados aspectos da luta contra o racismo. Ou da luta geral dos trabalhadores.

Distribuição massiva e gratuita

Exemplo disso é que, se não houver uma atitude decidida e vigorosa por parte dos movimentos que lutam contra o racismo, por parte dos sindicatos, dos intelectuais, corremos o risco do texto do Estatuto da Igualdade Racial sequer receber uma massiva divulgação, como se faz necessário. Os trabalhadores, ainda hoje, não conhecem seus direitos inscritos na CLT, a população brasileira em geral desconhece o texto da Constituição, não há consciência ampla ou sequer informação sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, muito embora já tenha completado 20 anos. É fundamental que seja cobrada do estado brasileiro uma edição massiva deste Estatuto da Igualdade Racial, algo na casa de dezenas de milhões de exemplares. E distribuição gratuita. Há capacidade gráfica ociosa para isto e há um povo que não tem acesso à leitura destes textos. Mas tem direito! Se não é dado ao cidadão o direito de desconhecer o texto de uma lei, em contrapartida, vemos que no Brasil o estudo e a divulgação ampla e gratuita da Constituição, para dar um exemplo, numa foram sistematicamente promovidas.

Todos este s textos legais devem merecer edições simples, popularizadas em sua forma e alcance, com a linguagem mais acessível e mais comunicativa possível, superando o intransponível juridiquês. Mas, estas edições massivas devem ser distribuídas gratuitamente, como se faz na Venezuela, por exemplo, com a divulgação de milhões de exemplares de bolso da Constituição Bolivariana, proporcionando um aprendizado importante para a população. Num país como o Brasil, que ainda registra formas de trabalho análogas ao trabalho escravo, o conhecimento dos direitos trabalhistas contidos na CLT deveria ser uma prioridade dos meios de comunicação e não apenas restrito a advogados trabalhistas e círculos de dirigentes sindicais. E os meios de comunicação, concessões de serviço público, deveriam sim priorizar horários específicos para o conhecimento das leis, no mínimo proporcionalmente ao tempo que desperdiça para estimular o consumo de álcool e a ingestão de comidas maléficas à saúde.

Universidade da África versus Navios Negreiros

Por fim, vale registrar que no mesmo dia da sanção do Estatuto da Igualdade Racial, o presidente Lula também sancionou a lei que cria a Universidade Federal da Integração Luso-Africana e Brasileira, a Unilab, que terá sede na cidade de Redenção, no Ceará, primeira cidade brasileira a abolir o escravagismo no Brasil, 5 anos antes da Lei Áurea. A criação desta universidade tem o mesmo simbolismo de outras iniciativas que colocam o Brasil em rumo oposto ao de muitos países que estão registrando endurecimento e perversidade no trato da questão racial.

Com a Unilab, que receberá estudantes africanos que aqui estudarão gratuitamente, o Brasil se aproxima do gesto de Cuba adotado há 12 anos, quando criou a Escola Latinoamericana de Medicina destinada a formar médicos para oferecer aos países mais necessitados do continente, inclusive aos Estado s Unidos. Cerca de 500 jovens negros e pobres estadunidenses estudam medicina em Cuba, gratuitamente. Quando voltarem formados para os EUA, poderão praticar medicina social nos bairros negros do Harlem e do Brooklin onde viviam; Segundo disseram estes próprios estudantes, se tivessem lá continuado provavelmente teriam sido capturados pelas perversas redes e garras do narcotráfico. Nos EUA dificilmente poderiam estudar medicina. Em contraponto ao bloqueio econômico e às agressões que sofre há décadas dos EUA, Cuba “contra-ataca” doando ao povo norte-americano a generosa formação humanizada de centenas de seus filhos.

Consciência generosa e solidária

O Brasil vai nesta direção. Além da Unilab, que dará oportunidade para que jovens africanos formem-se em nível superior, ombro a ombro com estudantes brasileiros, proporcionando mutuamente a formação de uma consciência generosa e solidária, marcada pelo reconheciment o que todos os povos do mundo e nós brasileiros em particular temos em relação aos povos africanos! Para além da Unilab, também na linha de pagar nossa dívida, está a instalação de unidades da Embrapa em território africano, e vem sendo mencionado por Lula o propósito de estimular a produção de agroenergia, permitindo a autonomia,a independência e a soberania tanto energética quanto alimentar dos povos africanos, em sua maioria ainda dependentes da importação de petróleo, ou ainda sem capacidade para a geração de energia elétrica.

Mandela , Cuba e a Mama África

No final do ato de sanção do Estatuto da Igualdade Racial, Lula disse que agora somos uma nação um pouco mais negra, um pouco mais branca e , sobretudo, um pouco mais igual. Perante o mundo, comparecemos com uma iniciativa que nos coloca em diferencial positivo e generoso. De certo modo, tomamos de Cuba uma parte de sua solidariedade para com os africano s, muito embora Cuba tenha chegado ao ponto de pegar em armas para defender a independência de Angola, derrotando o exército racista da África do Sul na Batalha de Cuito Cuanavale, e, com isto, derrotando o próprio regime do apartheid, como reconhece Mandela, dedicando esta conquista ao povo cubano.

Mesmo que ainda tenhamos tantas dívidas não pagas internamente e tantas desigualdades ainda não resolvidas, agora somos nós brasileiros a nos lançar, como nação, ao pagamento da gigantesca e dolorosa dívida que temos para com os povos da África. E com ações concretas: uma universidade, a presença de uma estatal como a Embrapa, políticas e convênios etc. Vamos apostando, como nação, num mundo mais justo, mais solidário, mais humano, incorporando a África, quando muitos países a consideram continente descartável. Muito breve, poderemos estar fazendo como o generoso povo cubano, enviando médicos, técnicos e professores para a Mama África. Constr uindo as bases para que se faça o trajeto contrário dos navios negreiros, humanizando o retorno na forma de conhecimento, tecnologia, saber e solidariedade.

Enquanto isto, muitos países, sobretudo os ricos que apoiaram o animalesco regime do apartheid no passado, seguem o vergonhoso exemplo de espalhar tropas e morte pelo mundo. O Brasil está em outra direção!

(*) Beto Almeida é Diretor da Telesur

sábado, 24 de julho de 2010

PASSEIO SOCRÁTICO
Frei Betto

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos, e em paz nos seus mantos cor de açafrão...

Em outro dia, eu observava o movimento do Aeroporto de São Paulo:
a sala de espera estava cheia de Executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado o seu café da manhã em casa; mas, como a companhia aérea oferecia outro café, todos comiam vorazmente.

Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos vistos por mim, até aqui, realmente produz felicidade?”.

Passados alguns dias, encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: "Não foi à aula?". E ela me respondeu: "Não. Eu só tenho aula à tarde". Comemorei: "Que bom! Isto significa, então, que, de manhã, você pode brincar, ou dormir até mais tarde!...". "Não;", retrucou-me ela, "tenho tanta coisa a fazer, de manhã...". "Que tanta coisa?", perguntei.. "Aulas de inglês; de balé; de pintura; piscina", e começou a elencar seu programa de garota robotizada...

Fiquei pensando: “Que pena”! A Daniela não me disse: "Tenho aula de meditação".

Vê-se que estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas, emocionalmente infantilizados.

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, tinha seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias!

Não tenho nada contra malhar o corpo... Mas, preocupo-me com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos. Alguns perguntaram "Como estava o defunto?". E outros responderão: "Olha..., uma maravilha, não tinha uma celulite!"...

Mas, como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação, porém, de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...

A palavra hoje é "entretenimento". Domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil, o apresentador; imbecil, quem vai lá e se apresenta no palco; imbecil, quem perde a tarde diante da telinha...

E como a publicidade não consegue vender felicidade, ela nos passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: "Se tomar este refrigerante, calçar este tênis, usar esta camisa, comprar este carro..., você chega lá!".

O problema é que, em geral, "não se chega"! Pois, quem cede a tantas propagandas desenvolve, de tal maneira, o seu desejo, que acaba precisando de um analista, ou de remédios. E quem, ao contrário, resiste, aumenta a sua neurose.

O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: a amizade, a auto-estima, e a ausência de estresse.

Mas, há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um Shopping Center. É curioso: a maioria dos Shoppings Centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles, não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de "missa de domingo". E ali dentro se sente uma sensação paradisíaca: não há mendigos, não há crianças de rua, não se vê sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno: aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se vários nichos: capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Mas, aquele que só pode comprar passando cheque pré-datado, ou a crédito, ou, ainda, entrando no "cheque especial", se sente no purgatório.

E pior: aquele que não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...

Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald...

Por tudo isto, costumo dizer aos balconistas que me cercam à porta das lojas, que estou, apenas, fazendo um "passeio socrático". E, diante de seus olhares espantados, explico:

- Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:

- Estou, apenas, observando quantas coisas existem e das quais não preciso para ser feliz!

segunda-feira, 19 de julho de 2010

África: colonialismo, racismo e morte

Artigos
Publicado em 17.07.2010

África: colonialismo, racismo e morte

Por Augusto Buonicore

No próximo ano se completarão 10 anos da realização da Conferência da ONU Contra o Racismo em Durban. Naquele conclave internacional pudemos constatar que mesmo passados cerca de 150 anos do fim do tráfico negreiro e 25 do fim do colonialismo europeu na África, estes temas continuavam incomodando as classes dominantes das grandes potências imperialistas.
Em Durban as nações africanas, visando reparar uma injustiça histórica, apresentaram a polêmica proposta determinando que os países que praticaram e se beneficiaram do tráfico de escravos e do colonialismo pagassem reparações e se desculpassem formalmente. Exigiram também que o tráfico e o colonialismo fossem considerados "crimes contra a humanidade".

Diante do texto proposto, os europeus e estadunidenses ameaçaram se retirar da Conferência. O representante britânico chegou a afirmar que eram "insuportáveis as exigências". Na declaração final, o tráfico de escravos acabou sendo considerado "crime contra a humanidade", embora não fosse aprovado nenhum pedido de desculpas às vítimas. Os europeus insistiram para que ele fosse considerado crime hoje e não no passado, quando foi realizado. O colonialismo, no entanto, não foi considerado "crime contra a humanidade". A tese da reparação também foi rejeitada. Aprovou-se apenas uma indicação para que os países desenvolvidos tomassem iniciativas no sentido de reverter as conseqüências da escravidão e da dominação colonial, sem detalhar como isso se daria.

Os intelectuais a serviço da causa colonial sempre procuraram negar a responsabilidade ocidental pela escravização dos povos da África. Eles alegavam – e ainda alegam - que os africanos eram capturados e vendidos como escravos pelos seus próprios líderes tribais locais; portanto, a responsabilidade deveria ser compartilhada. Uma clara tentativa criminalizar as próprias vítimas.

O tráfico negreiro e as origens do subdesenvolvimento africano

Contudo, os reclamos dos povos africanos são essencialmente justos. O escravismo e o colonialismo foram duas causas do seu subdesenvolvimento. O tráfico representou uma fortíssima sangria na população africana. Entre 1510 e 1860 mais de dez milhões de seres humanos foram conduzidos na condição de escravos para as Américas, 40% deles se destinaram ao Brasil. Cerca de 2 milhões morreram a bordo dos navios negreiros, conhecidos como tumbeiros. Calcula-se ainda que mais de 8 milhões tenham morrido entre o local de aprisionamento, no interior do continente, e o mercado de escravos nas costas africanas. Ou seja, o tráfico negreiro vitimou mais de 20 milhões de seres humanos.

A grande maioria destes mortos e deportados era composta de jovens que estavam no auge da sua capacidade produtiva. O trafico foi responsável pelo despovoamento de várias regiões. No período de expansão da cultura algodoeira nos Estados Unidos, entre 1800 e 1850, o número de deportados africanos chegou a 120 mil ao ano. Assim, o desenvolvimento do capitalismo nos EUA esteve intimamente ligado a tráfico de carne humana. A Inglaterra, por sua vez, foi responsável pelo transporte de 50% dos africanos escravizados. O tráfico, no século XVIII, chegou a representar metade do lucro das exportações dos países europeus. Muitas das cidades industriais inglesas ergueram-se a partir da riqueza provinda do comércio de escravos.

O tráfico desorganizou a vida social de várias comunidades africanas. A escravidão já existia na África, mas ela era residual e, em geral, de caráter familiar. A expansão do capitalismo transformou-a num negócio altamente rentável. Isso levou a uma mudança de escala no processo de escravização. Algumas tribos africanas abandonaram a produção artesanal e o comércio inter-regional para se dedicar ao novo e lucrativo comércio.

Estabeleceu-se um estado de guerra permanente no território africano. A agricultura, o artesanato e o comércio foram afetados duramente pelas deportações em massa e os massacres promovidos pelos escravistas, inclusive locais. Graças ao tráfico, em 1800, o continente africano havia regredido alguns séculos.

Portanto, é insustentável a tentativa de jogar nas costas dos próprios africanos a responsabilidade pela hecatombe, porque alguns chefes tribais se envolveram no apresamento humano para o "comércio" intercontinental. Estes eram cúmplices dos traficantes e devem ser condenados.

Mas, sem a constituição de um amplo mercado para mão-de-obra escrava nas Américas e sem os recursos provindos do ocidente capitalista não seria possível ter surgido estes caçadores de escravos no continente africano. Sem o capitalismo não haveria a escravidão moderna em tão larga escala. Assim, as bases do subdesenvolvimento não se encontram no interior das sociedades africanas e sim nas relações assimétricas impostas pelas potências capitalistas ainda no seu alvorecer.

O Colonialismo: opressão e miséria dos povos africanos

À praga do tráfico seguiu-se a do colonialismo. Na década de 80 do século XIX as grandes potências da Europa decidiram repartir e ocupar o continente africano. Ironicamente, a grande argumentação foi de ordem humanitária: a ocupação visava acabar com a escravidão e os déspotas locais. Justificativas muito próximas das utilizadas, até hoje, para as guerras que o imperialismo promove contra vários países que não se submetem ao seu jugo.

A África, novamente, se transformou em um campo de guerra. Os povos desse continente tentaram resistir à ocupação dos seus territórios, mas foram esmagados. A história de colonização é uma história de massacres, geralmente esquecidos pela história ocidental. Um militar francês descreveu assim a tomada de Mali em 1898: "Depois do cerco, o ataque (...). Todos são aprisionados ou mortos. Todos os cativos, cerca de 4 mil, são amontoados como rebanho. O coronel inicia a distribuição (...). A partilha (dos prisioneiros) decorreu entre disputas e golpes (...). No regresso fizemos etapas de 40 quilômetros com estes cativos. As crianças e todos os que ficavam cansados eram mortos a coronhadas e a golpes de baionetas".

Outro exemplo dos métodos “civilizados”, utilizados pelas potências capitalistas, foi nos dado pela "Missão Voulet-Chanoine". Em janeiro de 1899 esta expedição militar atacou uma aldeia africana. Um oficial descreveu as cenas que se seguiram: "Alguns atiradores (franceses) tinham ficado feridos. Para ‘dar exemplo’, o capitão Voulet mandou prender vinte mães com crianças pequenas em idade de amamentação, e mandou matá-las a golpes de lanças.". E, assim, foi feito.

No final do século XIX e primeiros anos do século XX, a escravidão aberta passou a ser substituída pela escravidão disfarçada, através do trabalho compulsório. O comércio de semi-escravos nas colônias francesas só seria proibido em 1905, mas o trabalho compulsório levaria mais alguns anos para ser proibido e não extinto.

A divisão internacional do trabalho, implantada pelo sistema colonial e fortalecida na fase imperialista do capitalismo, condenou o continente africano a ser um simples produtor de alimentos e matérias primas destinados à Europa e aos Estados Unidos. As indústrias artesanais existentes foram destruídas, lançando milhares de pessoas na miséria. No ocidente capitalista o mesmo processo que destruiu empregos no artesanato criou outros na grande indústria e representou um incremento ao desenvolvimento das forças produtivas. Na África a destruição do artesanato representou um verdadeiro retrocesso civilizacional. O artesão do ferro, do couro, do algodão se transformou em trabalhador compulsório (semi-escravos) nas grandes plantações e minas dos colonizadores brancos.

Foi se constituindo uma economia baseada na monocultura de exportação, integradas ao sistema mundial do capitalismo. As culturas alimentares tradicionais, que garantiam a subsistência das populações locais, foram abruptamente substituídas. O resultado imediato foi a explosão, em escala nunca vista, das epidemias de fome. Em Gâmbia, por exemplo, cultivava-se arroz, mas o colonialismo transformou este país em um grande produtor de amendoim. Gâmbia teve então de começar a importar arroz para minimizar a fome do seu povo.

A propaganda dos colonizadores sempre tentou passar a idéia de que as epidemias de fome e a subnutrição crônica dos povos africanos fossem coisas naturais, presentes desde sempre na história da África. A fome seria assim o estado normal do homem africano. O conceituado cientista brasileiro Josué de Castro demonstrou a falsidade desta tese. Segundo ele, o regime alimentar africano no período pré-colonial era bastante variado e baseava-se numa agricultura diversificada. Uma situação que o colonialismo iria alterar radicalmente.

E por fim precisamos desmascarar o mito que a colonização, pelo menos, teria trazido estradas, escolas, hospitais, ou seja, a modernização. Nada mais falso. Nas colônias portuguesas, após séculos de dominação colonial, os analfabetos ainda representavam 95% da população. Em Moçambique, por exemplo, Portugal jamais formou um só médico africano. Portanto, nada de bom trouxe o colonialismo aos povos africanos.

Á partir de 1945 o processo de descolonização adquiriu um ritmo frenético. Todas as colônias na Ásia e na África passam a adquirir a sua independência. Os últimos redutos do colonialismo caíram na metade da década de 1970, através de importantes movimentos nacional-revolucionários. Destaque para a libertação de Angola e Moçambique do jugo português. Mas, a ruptura com o colonialismo não significou a pacificação da África. Os governos que não se submeteram aos ditames do imperialismo foram vítimas de todos os tipos de agressão.

Após a libertação, o governo popular de Angola teve que enfrentar grupos contra-revolucionários, como a UNITA, apoiados pela África do Sul e o Zaire (tendo por trás os EUA). A guerra civil em Angola causou a morte de aproximadamente 1 milhão de pessoas e a destruição de grande parte da infra-estrutura do país. As mesmas cenas se repetiram em Moçambique. O imperialismo não deu um momento de descanso para esses povos e patrocinou atentados terroristas, golpes de Estado, embargos econômicos etc.

Assim, só pode ser considerado sarcasmo a atitude de um liberal como Karl Popper que lamentou: "libertamos estes estados (africanos) depressa demais e de maneira demasiada simplista”. Isso teria sido como “deixar um orfanato entregue a ele mesmo". Essa visão dos africanos como crianças que necessitariam de serem tuteladas até a maioridade é um dos elementos centrais da ideologia colonial, forjada no século XIX.

Atualmente, um dos grandes problemas que assola a África Negra é sua imensa dívida externa. No início do século XXI, dos 40 países fortemente endividados 33 pertencem a este subcontinente. O total da sua dívida ultrapassou a casa dos 250 bilhões de dólares, considerada impagável. Ela serve como instrumento para manter a dominação das grandes potências imperialistas na região. É um ato criminoso desviar recursos vitais de países tão miseráveis para encher os bolsos dos grandes banqueiros internacionais.

Por tudo isto é mais que do que justa a reivindicação de reparação feita várias organizações africanas. O primeiro passo para resgatar a enorme dívida que o ocidente capitalista tem com os africanos seria a decretação de uma ampla anistia de suas dívidas. Esta seria uma forma, ainda que limitada, de iniciar o processo de compensação pelos séculos de escravidão e de dominação colonial.

* Augusto César Buonicore é historiador e membro do Comitê Central do PCdoB.